sábado, 5 de maio de 2012

Fazer das tripas refeição!


Há expressões frequentemente utilizadas, que têm associado um sentido completamente diferente daquele que lhe deu origem. Um dos exemplos mais frequentes é a conotação negativa, e mesmo pejorativa, que é atribuída à palavra tripeiro, quando se quer definir uma pessoa que vive ou que nasceu no Porto. Quando se atribui essa designação a um portuense, contrariamente ao que a maioria pensa, estamos a elogiá-lo, definindo-o como uma pessoa altruísta, generosa e que abdica do melhor para dar aos outros. De facto, a origem da associação de tripeiros às pessoas do Porto remonta ao século XV e a uma mistura de factos históricos e lenda popular. Segundo a história, o Infante D. Henrique, filho de D.João I, deslocou-se à cidade do Porto no ano de 1415 para vistoriar os trabalhos dos estaleiros de Miragaia e do Ouro, local onde estavam a ser construídos os navios devido à edificação da muralha fernandina. O Infante era adorado nesta cidade. A sua chegada ao Porto foi muito festejada por toda a população, sendo aclamado tanto pelas classes trabalhadoras como pela alta burguesia. Na sua crónica Tomada de Ceuta, Zurara Gomes Eanes, que foi cronista oficial português, diz que o Infante era mui amado deles todos e o tinham quase por seu concidadão, referência ao nascimento do príncipe na cidade do Porto a 4 de Março de 1394. Embora desconhecendo o destino final dos navios que estavam a ser construídos nos estaleiros, toda a cidade estava empenhada em participar na sua construção. Os cordoeiros do Campo do Olival (mais tarde conhecido por Cordoaria) manufacturaram as cordas e cordoame necessários aos barcos, bem assim como os ferreiros da Ferraria de Baixo, junto a Miragaia, produzindo os apetrechos necessários às galés, naus, barcas e fustes que iam tomando forma nos estaleiros. Outros confeccionavam os velames e, já nas periferias da cidade medieval, em terras da Maia, Gaia e Bouças (Matosinhos) outros havia que preparavam as provisões para uma numerosa frota (Joel CLETO – Lendas do Porto: A Origem dos Tripeiros. O Tripeiro, 7ª série, vol. XXVII).
Segundo rezam as crónicas, o Infante, apesar de se mostrar satisfeito com todo o trabalho desenvolvido pelas gentes da cidade, achava que o esforço tinha que ser maior, tendo confidenciado ao Mestre Vaz, responsável da construção, que as embarcações que estavam a ser construídas no estaleiro tinham como destino Ceuta. Orgulhoso pela sua cidade ter sido escolhida para a construção de tão importante frota, o mestre Vaz reuniu os seus homens e os habitantes do burgo para partilhar a notícia e a necessidade de redobrarem esforços. Segundo a lenda, além do trabalho nos estaleiros, a população do burgo decidiu oferecer à frota todos os mantimentos que possuíam , especialmente a carne, que foi limpa e salgada antes de ser colocada nas embarcações. A cidade ficou apenas com as miudezas que restaram, nomeadamente as tripas. A armada que zarpou do Porto era composta por 70 navios e a vitória sobre Ceuta foi assinalável. Apesar de terem ficado apenas com as tripas, as gentes do Porto não baixaram os braços. Inventaram uma maneira saborosa de as confeccionar, dando origem às famosas tripas à moda do Porto, que ainda hoje são um dos pratos mais característicos da cidade. A receita foi sofrendo algumas alterações ao longo do tempo, já que no século XV não havia feijão em Portugal, que só chegou à Europa no século XVII. Na receita original as tripas  eram estufadas e servidas em cima de fatias de pão. Na altura, qualquer homem ou mulher que vendesse tripas, era denominado de tripeira ou freissureira, e segundo documentos escritos era grande a preocupação com a limpeza das miudezas, havendo um livro de registo de transgressões a essa obrigatoriedade. A venda de tripas não era permitida em toda a cidade, e além dos açougues, só se podia vender em locais bem limpos e arejados. O açougue principal situava-se junto à Sé do Porto, mas cada habitante só podia utilizar o açougue da sua área de residência. Ainda hoje os restaurantes da cidade fazem habitualmente o típico prato às quintas-feiras, talvez seguindo uma antiga tradição, já que era nesse dia que as tripeiras pagavam a quota semanal à Associação de Freissureiras do Porto. 
Podemos ainda hoje recordar a história, na Casa do Infante no Porto, através do quadro Estaleiros de Miragaia, de Eduardo Gomes (1956), onde estão representados os trabalhos de construção dos navios nos estaleiros de Miragaia, com o Infante D.Henrique e o Mestre Vaz no canto esquerdo da pintura. No monumento que a cidade do Porto erigiu em 1960 (no Largo António Calém, junto aos antigos estaleiros do Ouro), em homenagem à frota de D. Henrique, da autoria de Lagoa Henriques, estão retractadas duas figuras humanas e entre elas uma peça de carne esventrada, lembrando que na cidade apenas ficaram as tripas.
E assim nasceu a famosa alcunha de tripeiro  dada aos habitantes do Porto. Segundo Alberto Lemos (presidente da Confraria Gastronómica das Tripas à Moda do Porto)as típicas tripas são quase tão importantes como a portugalidade. Nasceram na altura dos descobrimentos, na época em que as naus tinham de ser abastecidas. A oferta da carne revela um pouco da personalidade dos portuenses. São pessoas muito dadas, capazes de tirar a camisola por alguém.
Os portuenses mais do que fazer das tripas coração, fizeram das tripas refeição! 


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