quinta-feira, 28 de junho de 2012

Escrita: a transmissão da memória

Escrevemos porque não queremos morrer. É esta a razão profunda do acto de escrever. Esta frase de José Saramago ilustra bem o poder da escrita. A necessidade de comunicar, de transmitir informação e de manter na memória das novas gerações saberes antigos foi desde sempre uma das principais preocupações do Homem. Perpetuar as nossas memórias, faz-nos sentir de facto imortais. Era preciso algo para manter vivas todas as descobertas, todo o saber, toda a memória humana, e à medida que o Homem evoluía essa necessidade tornou-se mais premente. A vontade humana de se expressar levou ao aparecimento da escrita. No  quarto milénio a.C , na Mesopotâmia, nasce a escrita cuneiforme (do latim cuneus que significa cunha + forma com o mesmo significado em português) que é a forma de escrita mais antiga conhecida. Os Sumérios, que na altura habitavam na região sul da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, desenvolveram este tipo de escrita pela necessidade de registar a circulação de pessoas e bens.  Com recurso a um tipo de cunha - instrumento pontiagudo de forma triangular -  que utilizavam para gravar símbolos em placas de barro, desenvolveram uma escrita que chegou a possuir 350 caracteres cuneiformes. Arqueólogos descobriram recentemente bibliotecas na região da antiga Mesopotâmia, sendo a mais famosa aquela que pertenceu ao rei Assurbanipal, último rei sírio (668 a 627 a.C.), a chamada Biblioteca de Ninive, que continha milhares de textos escritos em tabuinhas de barro cozido, entre as quais se encontravam decretos e cartas reais, crónicas e textos religiosos, que se tornaram na principal fonte de conhecimento sobre a vida dos povos Sumérios.

A primeira pessoa a decifrar a escrita cuneiforme, mantendo viva a memória suméria, foi o alemão Georg Friendrich Grotefrend (epigrafista alemão) em 1802. Quase ao mesmo tempo desenvolvia-se no Antigo Egipto a escrita hieroglífica. A palavra hieróglifo, provém da conjugação de duas palavras gregas: hierós que significa sagrado e glýphein que é o mesmo que escrita. As mais antigas inscrições hieroglíficas datam do terceiro milénio a.C. sendo uma escrita monumental e religiosa, com cerca de 6900 caracteres,  que chegou até nós nas ruínas de templos religiosos e em túmulos. De difícil compreensão e tradução, foi apenas com a descoberta da Pedra de Roseta no ano de 1799 (descoberta pelo exército comandado por Napoleão Bonaparte na região de Roseta no Egipto) que foi possível entender na totalidade a escrita do antigo Egipto. Esta Pedra tem a particularidade de ter o mesmo texto - um decreto do rei Ptolomeu V promulgado no ano 196 a.C. - em três escritas diferentes: na escrita hieroglífica do antigo Egipto,  em demótico (variante escrita do egípcio tardio) e no grego antigo. Em 1803 foi feita a tradução do texto em grego antigo e em 1822 Jean-François Champollion (linguista e egiptólogo francês) anuncia a decifração dos textos egípcios. A memória dos antigos egípcios tinha sido finalmente recuperada. Cerca de 1100 a.C. os Fenícios desenvolveram um tipo diferente de escrita em que um símbolo significava um som , ou seja desenvolveram um alfabeto para uma escrita fonética.  A palavra alfabeto é de origem grega e conjuga as duas primeiras letras do abecedário helénico: alpha (a letra a do nosso abecedário) beta (a letra b do nosso abecedário). No entanto na escrita fenícia existiam duas letras com o nome de alef e bet! O alfabeto fenício tinha 19 caracteres e eram apenas consoantes.
Esta invenção foi um momento histórico  para a Humanidade. Esta escrita foi adoptada e aperfeiçoada pelos gregos por volta do ano 800 a.C, sendo a base de todos os alfabetos das línguas ocidentais. As consoantes utilizadas no alfabeto romano, foram criadas pelos fenícios e as vogais posteriormente acrescentadas pelos gregos. A escrita permitiu ao homem perpetuar o seu conhecimento e a sua cultura, e está na base de todo o progresso humano.  Escrever é lembrar-se (François Mauriac) e manter viva a memória de tempos idos fez de nós o que somos. Acumulando saberes, relembrando tradições, transmitindo conhecimento através da escrita conseguimos honrar aqueles que antes de nós procuraram esse saber e esse conhecimento. Milhares de anos passaram desde os primeiros registos escritos conhecidos, mas a memória de quem os realizou, permanece em nós graças à sua capacidade criativa de transmissão e de expressão. A memória das suas vidas não se perdeu e graças à sua forma de comunicação, chegou até nós, e proporcionou-nos uma nova visão do  nosso passado. Como disse Jean Clézio (escritor francês) a escrita é a única forma perfeita do tempo. 

domingo, 24 de junho de 2012

A viagem do Vinho do Porto



O Vinho do Porto também chamado de néctar dos Deuses, é conhecido mundialmente e não necessita de apresentações. É nas encostas agrestes e rochosas que ladeiam o rio Douro, que este afamado vinho começa a sua história. Numa região de montes que não deixam de crescer, videiras que ninguém pode contar, rio que não para de correr, pedaço de viril beleza (Miguel Torga)actualmente Património Mundial da Humanidade, nasce o vinho com o nome de cidade. Da mistura de sol e rocha, de água duriense e labor humano, nasce a vinha e se desenvolvem as uvas que vão dar origem ao néctar divino. Da pedra se fez terra, do sol bravo o licor generoso, que tem um ressaibo de brasa e de framboesa (Aquilino Ribeiro). Colhida a uva e pisado o mosto, inicia-se uma nova jornada para o famoso vinho. Transportado em pipas de madeira para envelhecer, aguarda a passagem do tempo armazenado nas históricas Caves de Vila Nova de Gaia, onde é depois engarrafado e enviado para todas as partes do Mundo. A história de vida do vinho do Porto não se alterou ao longo dos anos. A introdução da tecnologia veio alterar a sua produção, e da força humana passou-se a usar a força mecânica. Mas o vinho do Porto mantém o seu sabor único e incomparável. Como disse o grande escritor duriense Miguel Torga, o Douro (...) produz a única riqueza de que somos senhores exclusivos: o Porto, que o mundo assim conhece e saboreia, e imitam em todas as latitudes sem nunca igualar. A Região demarcada do Douro, foi a primeira região demarcada reconhecida no Mundo, criada durante o reinado de D. José I em 1756. Muito trabalho humano esteve envolvido na produção deste néctar dos Deuses ao longo dos anos. A apanha da uva é uma tarefa dura e monótona, realizada muitas vezes sobre condições climatéricas agrestes. O transporte das pipas de vinho do Alto Douro para Vila Nova de Gaia era inicialmente feito por barcos rabelos. Transformar o Douro numa estrada de vinho foi tão duro como navegar oceanos (Jaime Cortesão)Mais tarde passou a ser feito através de comboio, diminuindo o tempo do seu transporte e aumentando o número de pipas transportadas. O tempo é outro, as técnicas mudaram, o trabalho simplificou-se. Mas os homens e mulheres que deram ao Vinho do Porto o trabalho de uma vida inteira não devem ser esquecidos pois foi graças a eles que a viagem deste famoso vinho se iniciou. Datado de 1914, este filme realizado pela Invicta Filme, retrata de forma única todo o ciclo de produção do Vinho do Porto. Com quase 100 anos este documentário é um legado raro que devemos preservar.



sexta-feira, 22 de junho de 2012

A curiosidade do calão


O calão e as palavras populares fazem parte da língua portuguesa. Variando de região para região, a origem destas expressões perde-se no tempo e na memória de quem as pronuncia. Muitas vezes, sem se saber bem qual o seu significado, são utilizadas diariamente e fazem parte do vocabulário e da língua portuguesa, enriquecendo-a e tornando-a viva. Nem sempre foi possível comprovar a sua origem, mas ficam algumas curiosidades relativamente à palavras que popularmente são utilizadas na língua portuguesa, em especial na região norte do país:

Carago - interjeição popular muito usada no norte de Portugal, com particular relevo no grande Porto, que significa admiração, surpresa, impaciência ou irritação. É também um termo depreciativo para galego. Termo também utilizado na biologia, para designar um peixe que aparece nas costas portuguesas, também conhecido por peixe-frade. Historicamente os caragos ou carajus, eram uma espécie de mágicos que fabricavam as carantulas, imagens, caracteres e cifras mágicas para realizar encantamentos. Estes caragos faziam os seus encantos particularmente às sementeiras; aproveitavam o canto das aves para os seus agouros; chamavam os demónios com certas fogueiras (Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram, Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, ano de 1798). A sua prática foi proibida por Alvará de D.João I. A palavra carago é muito antiga e o seu significado foi alterado ao longo dos tempos. Mas a palavra permanece e mesmo considerada calão, já faz parte dos dicionários de língua portuguesa.  É uma expressão com diversos significados pois depende do contexto em que é utilizada, mas o verdadeiro sentido está na pessoa que a pronuncia. Normalmente associada às pessoas do Porto, carago é uma palavra que faz parte da história da língua portuguesa e que foi adoptada pelas gentes do Norte.

Morcão - segundo o dicionário da Porto Editora, além de pequena lagarta, morcão designa um individuo indolente, aparvalhado ou mandrião. Deriva da palavra castelhana mórcon, do latim murcone, que representa um individuo gordo, baixo e mole. No entanto mórcon também é o nome de uma morcela feita de tripa grossa. Alguns etimologistas defendem ainda que morcão pode ter origem na palavra latina murcus que significa cobarde e preguiçoso, palavra já utilizada por Santo Agostinho, na sua obra A Cidade de Deus, escrita nos anos de 416 a 427. Morcão tornou-se num vocábulo popular muito usado no Norte do país, mas também muitas vezes utilizados por grandes escritores portugueses como Eça de Queiroz, que na sua obra A Relíquia escreve: à noite em casa da Adélia, estava tão derreado, mono e mole ao canto do sofá, que ela atirava-me murros pelos ombros, e gritava, furiosa: Esperta, morcão! 


Badameco - palavra que deriva do latim vade-mécum que significa vem comigo, e que em português antigo designava a pasta de livros que eram usados frequentemente e que acompanhavam sempre quem os possuía. Provavelmente é deste significado antigo, de algo que acompanhava sempre alguém, que passou a definir aquele que não era capaz de decidir sozinho ou que seguia outrem. Passou assim a designar uma pessoa sem importância, um palerma. Luiz Augusto Palmeirim, escritor e poeta português do século XIX, reforça o sentido dado à palavra badameco quando escreve: Eu aposto que o homem tem razão, a história da toalha não pode deixar de ser namoro. Algum dia foge com algum badameco, talvez com esse que por aí passa todos as tardes, e deixa o patrão a pedir esmola (A domadora de feras: comédia em um acto,1857).




terça-feira, 19 de junho de 2012

O Rio do Esquecimento

Percorrendo montanhas e planaltos, serpenteando por vales verdejantes e luxuriantes, o rio Lima nasce a uma altitude de 975 metros no monte galego de Talariño na Província de Ourense, para desaguar no oceano Atlântico junto à costa da portuguesa cidade de Viana do Castelo, após calcorrear aproximadamente 110 quilómetros. Viajando por paisagem galegas e minhotas, o Lima tem o privilégio de ter nas suas margens locais como Lindoso, Ponte de Lima e Ponte da Barca. (...) todo o Lima na grande extensão desde Ponte de Lima a Viana, é espraiado, com as margens atapetadas de verdura, matizado de lugarejos, cheio de vida, de sorrisos, de amor (António Costa, No Minho, 1874). Denominado de Limia na Galiza, deve provavelmente o seu nome à grande quantidade de lamarões (lamaçais) e lagoas que existiam na sua nascente, denominados de lymnas em grego e lymun em latim, donde derivou o nome Lima em português. De águas límpidas e calmas era conhecido pela fartura de salmões, trutas, lampreias e sáveis que as populações das suas margens pescavam em grande quantidade. Também denominado de Belion pelo geógrafo grego Estrabão, que significava nativo (os lusitanos foram também designados por belitanos), foi durante muito tempo designado por rio Lethes (latim) ou Oblivio (grego), o rio do Esquecimento. De acordo com a mitologia grega, as almas que chegavam ao mundo dos mortos, o Hades, e que depois do julgamento final vagueavam pelos Campos Elísios, deviam beber da água do Rio Lethes para que toda a memória da sua vida anterior fosse apagada. Só assim podiam voltar ao mundo dos vivos, ou seja, ressuscitar. De acordo com a tradição grega, o Lethes era um dos cinco rios do Hades, com águas de grande beleza e calma, situado a Ocidente, para lá do mundo conhecido (Conde de Bertiandos, 1898)Associado a esta mitologia, um acontecimento histórico veio ainda acentuar a ideia de que o rio Lima era de facto o rio Lethes ou do Esquecimento, que condenava todos aqueles que atravessassem ou bebessem as suas águas à perda das suas memórias. Na sua narrativa Estrabão geógrafo grego indica que nas cercanias do actual cabo Finisterra, se encontravam Celtas que para aí se haviam deslocado na companhia de Túrdulos, durante uma expedição guerreira (para a conquista conjunta da Galiza, século VII aC.). No entanto, e ainda segundo Estrabão, chegados ao rio Lima, mal o haviam passado gerou-se entre eles tal discórdia que, morrendo o chefe dos Túrdulos, e esquecidos da aliança que haviam feito, tiveram que ficar no mesmo sítio esquecendo o caminho para a sua antiga pátria. Por isso mesmo, explicava ainda Estrabão, ao Rio Lima se chama também Rio do Esquecimento (Joel CLETO, Monte Murado, Carvalhos, in A mais velha aliança, O Comércio do Porto, Revista Domingo, Porto, 11 de Fevereiro 2001)O rio Lima passou a ser uma fronteira intransponível e uma muralha natural de protecção contra os ataques e incursões dos povos inimigos. O medo e a superstição impediam os exércitos de passar para a outra margem do rio e durante anos as suas águas foram intransponíveis.  
No ano 137 aC. as legiões romanas comandadas por Decimus Junius Brutus, depois de terem conquistado a Lusitânia dirigiam-se para a Galiza no seu ímpeto conquistador. Chegados às margens do rio Lima os soldados romanos, cientes do nome do rio e do efeito mítico das suas águas desobedeceram por isso às ordens do seu comandante, quando este lhes ordenou que atravessassem para a outra margem. Nenhum soldado quis correr o risco de esquecer a sua vida passada, a sua família  ou a sua terra Natal. Assim, Decimus Junius Brutus viu-se obrigado a fazer a travessia sozinho. Uma vez chegado à margem norte, chamou os seus homens um a um pelos seus nomes, provando desta forma que as águas do Lima não conduziam ao esquecimento do passado (Conde de Bertiandos, 1898)O mito caiu e o rio Lima deixou de ser uma muralha intransponível, mas o nome manteve-se durante muitos mais anos. Almada Negreiros pintou uma tapeçaria em que retrata a legião romana a passar o rio do esquecimento que ele próprio descreve por palavras suas: Comandadas por Decius Junius Brutus, as hostes romanas atingiram a margem esquerda do Lima no ano 135 a.C. A beleza do lugar as fez julgarem-se perante o lendário rio Lethes, que apagava todas as lembranças da memória de quem o atravessasse. Os soldados negaram-se a atravessá-lo. Então, o comandante passou e, da outra margem, chamou a cada soldado pelo seu nome. Assim lhes provou não ser esse o rio do Esquecimento. Qualquer que seja o nome que se lhe atribua, o rio Lima é um rio repleto de história. Nas suas águas viajaram ao longo dos séculos homens e mulheres de diferentes origens e condições sociais e fizeram-se importantes trocas comerciais. 
Em 2003 foram recuperadas do seu leito duas pirogas  monóxilas (feitas de um único tronco de árvore) datadas do século IV e II aC. Estes achados estão claramente relacionados com uma tradição multimilenar (...) de passagem do rio (Francisco Alves e Eric Rieth, Lisboa 2007).
O rio Lima mais do que uma fronteira intransponível tornou-se numa via de comunicação e de ligação dos povos. Como muito bem descreve o Professor Eugénio de Castro Caldas este rio minhoto, transmite um sentimento que deveria fazer parte de todos de aqueles que são descendentes dos que viveram nas suas margens
Ser minhoto é ser Celta; 
Castrejo Galaico, pouco Lusitano; 
mais Suevo do que Vizigodo; nada Mouro.
Aragem do Atlântico sobre o Mediterrâneo.
Do berço de Portugal, não da colónia
Se perguntar se é bem ou mal,
julgo que é apenas tal e qual:
mais enxada do que charrua,
mais regadio do que sequeiro,
mais prado do que pousio,
mais trabalho do que terra.
De mitologia e de realidade, de memórias e tradições, de alegrias e de perdas estão repletas as águas deste rio, e apesar do nome que durante tantos anos ostentou, se pararmos perto das suas margens e em silêncio escutarmos com atenção o seu murmurar, decerto que ficaremos encantados com aquilo que tem para nos contar. Basta sabermos ouvir!


Nota: A imagem da piroga, da autoria de Francisco Alves e Miguel Aleluia, foi retirada do estudo de Francisco Alves e Eric Rieth, intitulado As pirogas 4 e 5 do Rio Lima, Lisboa 2007





domingo, 17 de junho de 2012

Madeira: Um jardim no Atlântico

A Ilha da Madeira, foi descoberta em 1419 pelos navegadores portugueses João Gonçalves Zarco e  Tristão Vaz Teixeira que tendo observado uma espécie de nevoeiro, que constantemente se lhes oferecia no mar, e sempre no mesmo sítio e direcção, suspeitaram o que poderia ser, e dirigindo-se para aquela parte, descobriram a Ilha da Madeira, a que deram este nome pelo alto e vasto arvoredo, de que a acharam coberta (Índice chronológico das navegações, viagens, descobrimentos e conquistas dos portugueses, 1841). No entanto as ilhas da Madeira e de Porto Santo já seriam conhecidas antes dos portugueses lá chegarem. Na obra de um frade mendicante espanhol intitulada Libro del Conoscimiento datado de 1348-1349, as ilhas do Arquipélago da Madeira são referidas pelo nome de Leiname, Diserta e Puerto Santo. Território de uma deslumbrante beleza natural com um clima ameno de poucas variações térmicas ao longo de todo o ano, tornou-se num ponto de grande atracção turística. Ilustres personagens da história passaram por estas ilhas entre as quais se destacam: a Imperatriz Leopoldina da Áustria, futura mulher de D.Pedro, Imperador do Brasil em 1817; a Imperatriz Austro-Hungara Elizabeth, mais conhecida por Sissi, que se tornou visita assídua destas ilhas; a rainha Adelaide de Inglaterra em 1847; Imperador Carlos da Aústria, que aqui acabou por falecer em 1922; Whinston Churchil em 1950. Este jardim plantado no meio do vasto oceano Atlântico tem servido de inspiração para poetas e escritores ao longo dos séculos. O grande Luís de Camões faz-lhe referência no Canto V dos Lusíadas:

Passamos a grande Ilha da Madeira,
Que do muito arvoredo assim se chama;
Das que nós povoamos a primeira,
Mais célebre por nome do que por fama.
Mas nem por ser do mundo a derradeira,
Se lhe avantajam quantas Vénus ama;
Antes, sendo esta sua, se esquecera,
De Cypro, Guido, Paphos e Cythera.

Actualmente o Arquipélago da Madeira é conhecido internacionalmente pelo seu famoso vinho, o Vinho da Madeira, o seu Carnaval e a famosa Festa da Flores, que se realiza todos os anos na primavera, tendo-se tornado num concorrido destino turístico. Relembrando tempos idos, este pequeno filme  produzido pelo americano James Fitz Patrick, datado de  1931, mostra-nos uma solarenga e paradisíaca ilha que apesar de ter sofrido alguma alterações típicas do passar do tempo, mantém intocável a sua beleza e hospitalidade tão característica do povo português.





quinta-feira, 14 de junho de 2012

As canções de acalentar

A cantiga de berço, o suave embalo e aconchego, nos braços das mães ou amas carinhosas, foi sempre em todos os povos o primeiro gesto de solidariedade com o recém-nascido (Melo, 1985). A canção de embalar é uma das mais antigas manifestações de expressão cultural dos povos, um costume sem idade e sem tempo, cuja existência é a mesma da primeira mulher que deu à luz o primeiro filho (Anabela Canez). O acto maternal de acalentar, o mesmo que embalar ou adormecer, é universal e independente do grau de civilização. A transmissão desta expressão poética da linguagem humana é feita de geração em geração, geralmente por mulheres, acolhendo a criança para acalmá-la e adormecê-la nos braços, no berço, na cesta, na rede (Leite de Vasconcelos,1907)O primeiro documento existente com referência à cantiga de acalento, data de 1400 a.C. tratando-se de um exemplar em escrita cuneiforme que remonta aos antigos povos da Suméria. Há registos de canções de acalento nos índios do Chiloé (província do Chile), nos Dindjie de Alasca, nos Sioux, no Haiti, nos Índios do Brasil, nos Árabes e Berberes, nos Bosquímanos e em várias ilhas da Oceania. No século IV aC Teócrito, poeta grego de maior destaque do período helenístico, descreve-nos uma canção de acalento cantada por Alcmena para seus filhos gémeos, Heracles e Íficles:
Dormi, meus meninos,
Um sono doce e brando;
Dormi, almas minhas,
Irmãos um do outro,
Filhos afortunados;
Repousai felizes,
E felizes chegai até amanhã de manhã. (Leite de Vasconcelos, 1907)
Aulo Pérsio Flaco, poeta satírico da Roma antiga, refere nos seus poemas do século I, o cantar de uma ama de leite e também Arnóbio de Sica faz referência a cantos para embalar crianças, chamando-lhes doces cantigas. Nos  séculos XII e XIII, o poeta italiano Dante Alighieri, apresenta alguns versos, com o termo  nanna e a sua congénere ninna, palavras melodiosas que fazem parte da maior parte das canções de berço, transmitindo a importância que os italianos davam e a poesia que empregavam no cuidado à primeira infância. Em França existem inúmeros registos de canções de acalento, sendo denominadas por berceuses, tal como em Inglaterra onde são conhecidas como lullaby. Segundo Leite de Vasconcelos, as canções de berço portuguesas têm os seus registos a partir do século XVI. Luís de Camões e Gil Vicente (onde podemos ver a repetição de sons onomatopeicos, tão característicos das canções de embalar) fazem referência às canções de berço nas suas obras:

O som dos gritos, que no berço dava,
Já como de suspiros me soava.
Com a idade e fado estava concertado:
Porque quando por caso me embalavam,
Se de Amor tristes versos me cantavam,
Logo me adormecia a natureza. in Luis de Camões, Canção XI


Ro, ro,ro
nosso Deus e Redentor,
não choreis, que dais dor
à Virgem  que os pariu
Ro ro ro   in Gil Vicente, Auto da  Sibila Cassandra, Cena II


Também num dos mais conhecidos romances da região de Trás-os-Montes, intitulado D.Silvana, há referência à cantiga de embalo, onde a condessa nina seu filho amamentando-o com ternura antevendo a sua morte ordenada pelo rei (Leite de Vasconcelos, 1907). Em 1872 é publicado o primeiro livro com uma relação de cantigas de ninar da autoria de Neves de Melo. Caracterizada pelo ritmo lento, marcada pela sensibilidade e ternura transmitidos pelo mais puro sentimento materno de protecção, a canção de embalar faz parte da cultura popular universal. O texto, a música, o balancear, a constante repetição de sons simples, conjugam-se numa forma única,  com o objectivo de embalar o sono do bebé. O saber popular, na sua ancestralidade imensa, cuidava de envolver o bebé em diferentes conselhos, rezas, protecção divina, num carácter de intimidade embaladora (Maria Isabel Ribeiro de Castro, 2008). As cantigas de acalento, além deste factor de protecção englobam ainda a necessidade do pequeno bebé se transformar num homem cumpridor das normas sociais e conhecedor dos sofrimentos humanos. Muitas vezes a mãe canta e alerta o bebé para os perigos, as preocupações e os problemas sociais, sempre com uma aura de protecção e conselho: 

Dorme, dorme, meu menino
Que a tua mãe tem que fazer,
Ela tem muito trabalho
E tem pouco que comer!

Meio de transmissão oral da cultura tradicional de geração em geração, as canções de embalar incorporam no seu seio mensagens de teor moral, pedagógico e psicológico e são por isso vivos documentos históricos de transmissão dos saberes, emoções, vivências, medos e costumes da época a que reportam. O acalanto, canção ingênua, sobre uma melodia muito simples, com que as mães ninam seus filhos, é uma das formas mais rudimentares do canto, não raro com uma letra onomatopaica, de forma a favorecer a necessária monotonia, que leva a criança a adormecer. Forma muito primitiva, existe em toda parte e existiu em todos os tempos, sempre cheia de ternura, povoada às vezes de espectros de terror, que os nossos meninos devem afugentar dormindo. (...) vão passando por todos os berços (...) e vivem em perpétua tradição, de boca em boca, longe das influências que alteram os demais cantos (Renato Almeida, História da Música Brasileira). No entanto a sua influência vai muito mais além do acalento e embalo. A voz humana, especialmente se for da mãe, o contacto físico e emocional transmitidos pela canção, permitem ao bebé que está em pleno desenvolvimento físico e cognitivo, receber as primeiras informações vindas do mundo exterior através da música. Todo o acto de embalar e de acalentar está imbuído de uma certa magia que só pela música pode ser transmitida. A transmissão de sensações, de saberes e de sentimentos tão profundos como protecção, amor e segurança   através da música, linguagem universal, permite ao bebé desenvolver-se com harmonia e equilíbrio. 
É preciso desenvolver uma inteligência sensível, encontrar caminhos para alegria e afirmar a vida na interligação. E se quisermos verdadeiramente fazer justiça às crianças, teremos de desafiá-las na sua graça e poder, através da sua própria cultura. (...) toda a criança gosta de música. Não será pois oportuno, favorecer-lhes a índole e levá-las a tocar o seu destino com confiança? (Lídia Hortélio, etnomusicóloga). De tradição popular ancestral a canção de embalar tornou-se num instrumento precioso de desenvolvimento infantil. Educar e formar com música já fazia parte do saber das nossas ancestrais. Independentemente de quem canta e embala, o que é verdadeiramente importante é que a cantiga de alento não deixe de existir no mundo mágico de um bebé em formação, como disse Guerra Junqueiro no seu poemaNo lugar vago deixado pela mãe, está agora o rosto meigo da ama que o acalenta e lhe canta cantigas de o fazer sonhar, canta-lhe cantigas de o embalar, canta-lhe cantigas de o adormentar. Ainda hoje tenho na memória a voz e as palavras doces cantadas pela minha mãe quando me trauteava canções de acalento. 
Faz ó-ó, faz ó-ó, meu bebé
Que a mamã vai-te cantar
Faz ó-ó, faz ó-ó, meu bebé
Fecha os olhos e deixa-te embalar!
Mantenhamos pois viva esta tradição imemorial e não deixemos que a voz cantada da mãe ou do cuidador desapareça dos ouvidos em formação dos nosso bebés.





segunda-feira, 11 de junho de 2012

Imagens com história: Fevereiro 1908


O dia 1 de Fevereiro de 1908, marcou para sempre a história de Portugal e dos portugueses. Neste dia, no Terreiro do Paço em Lisboa, eram assassinados o Rei D. Carlos e o seu filho, o príncipe herdeiro Luís Filipe. Manuel dos Reis da Silva Buiça, natural de Bouçoães, Valpaços, expulso do exército em 1898 por indisciplina, na altura professor primário do Colégio Nacional,  e Alfredo Luís da Costa, empregado comercial e editor, natural de Castro Verde, foram os autores do atentado. Portugal entra num período de grande convulsão política e social. D. Manuel II, único filho vivo de D. Carlos e D. Amélia, é coroado a 6 de Maio 1908 com apenas 18 anos. Mas o reinado é de curta duração, e a 5 de Outubro de 1910 parte para o exílio nos arredores de Londres, quando é instituída a República em Portugal.
Este pequeno filme, realizado por um anónimo e datado de 10 de Fevereiro de 1908, retrata o cortejo fúnebre de D. Carlos e de seu filho, Luís Filipe. Imagens que marcam um dos períodos mais violentos da história de Portugal.



      


quarta-feira, 6 de junho de 2012

Malha, fito ou chinquilho

O Homem é um ser social e com uma necessidade constante de sentido de pertença. Há muitas formas de socializar, mas uma das mais antigas são os jogos populares. Jogos antigos, cheios de tradição, que espelham momentos passados em épocas presentes. Baseados muitas vezes em situações de vida real ou representando cenários bélicos, permitem juntar pessoas diferentes proporcionando momentos de convivência com representação de saberes antigos. O jogo popular elege a diferença, afirmando a identidade, insensível à igualização massificante, atrai as pessoas como pessoas (...) o prazer da relação interpessoal, em que o adversário é o companheiro de jogo; o culto da amizade duradoura, o riso saudável ante o insucesso, a tolerância, o gosto das coisas simples, a ligação florida ao passado, a sua evocação lendária (António Cabral, in A Teoria do Jogo). Um dos jogos populares mais conhecido em Portugal, é o chamado Jogo da Malha, também conhecido como jogo do Fito ou do Chinquilho. Não existe grande certeza quanto à origem deste jogo, mas a sua história é antiga. A sua prática é relatada pela primeira vez pelos soldados romanos, que em tempo de descanso atiravam com ferraduras inutilizadas dos cavalos contra estacas, tentando ficar o mais perto possível destas. Rapidamente se tornou num jogo entre os soldados, ganhando aquele que mais perto da estaca conseguisse colocar a ferradura. Em 1490 é pela primeira vez mencionado o jogo da malha, mas o primeiro registo escrito surge num documento francês de 1644. Jogado em França e também em Itália, é em Portugal que ganha maior dimensão, tornando-se num jogo  de cariz popular. A fama que alcança é tal, que o padre Raphael Bluteau, pregador da Rainha de Inglaterra, define o jogo do Fito no seu livro Vocabulário Português e Latino,  datado de 1713: Fito – um pauzinho fincado no chão () coisas que atiravam os antigos em diferentes jogos. Fito também se chama o jogo em que se põe um tijolo em pé, a que se atira para o derrubar ou para ficar mais perto dele. Parece-me que se pode usar destes termos por ter este jogo alguma semelhança com o dos antigos atletas romanos. 
Normalmente jogado após um dia de trabalho, altura em que os homens se reuniam para confraternizar, rapidamente se tornou num momento de divertimento e companheirismo. Eram usadas peças rudimentares como pedras, ferraduras, pedaços de ferro que variavam de tamanho e formato. Os pinos ou fitos não tinham um tamanho certo e tudo servia para jogar. Em Portugal o jogo da Malha, varia de região para região, no tamanho da malha, na distância a que é colocado o fito ou o pino e até na forma como são contabilizados os pontos. Alguns jogam com pedras, outros com moedas e outros ainda com malhas de ferro feitas propositadamente para o desafio popular. Formando equipas de dois elementos, o objectivo final é derrubar o pino (fito) ou pelo menos colocar o mais perto possível as malhas, somando os pontos obtidos ao longo do jogo. Mantendo constantes as regras de base, a este tradicional jogo português adapta-se muito bem o ditado cada terra com o seu uso, cada roca com o seu fuso. Actualmente o jogo da malha, tal como todos os outros jogos tradicionais, está a cair no esquecimento. Dominados pelo mundo tecnológico, pelo correr dos ponteiros do relógio e isolados em altos condomínios fechados, os momentos de confraternização, de partilha e de camaradagem entre os homens ditos modernos escasseiam. Momentos como os descritos no poema de António Cabral cada vez são mais raros, mas pelo menos ficam na memória e registados em palavras para as gerações vindouras. 
Na minha aldeia aos domingos de tarde, os homens jogam o fito,
Em frente a cada taberna, há um ou dois grupos, e ao lado os assistentes de olhos moles (...)
O fito é um jogo como outro qualquer: inútil! (...)
Mas é um jogo, e por isso, um meio de afugentar o tédio durante algumas horas.
- Seis! Só um ponto parceiro...A...í! Morreu!
Os vencedores correm um para o outro, abraçam-se. E ao erguerem os copos de vinho, sentem a alma tão cheia como qualquer campeão de qualquer coisa, em qualquer parte do mundo
(António Cabral, Poemas Durienses)
Quem sabe se num futuro próximo as agendas electrónicas, os telemóveis de 4ªgeração, os iphones, os ipods, os tablets, ferramentas de um mundo que tem tanto de global como de isolador, se possam colocar por momentos de lado, e nos permitam confraternizar e socializar em presença física de forma a podermos dizer que afinal a tradição ainda é o que era!!

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Um enchido do século XV



As tradições normalmente não se questionam, mantêm-se e prolongam-se. No entanto é importante tentar saber o que está na sua base já que por detrás delas encontram-se muitas vezes pedaços da nossa história, que de outra forma seria difícil descobrir. As tradições culinárias, há anos enraizadas no nosso quotidiano encerram pequenos mistérios que vale a pena desvendar. Fazendo parte destes pedaços de história estão as alheiras. palavra alheira aparece referida pela primeira vez na 7.ª edição do Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva, de 1878 como alhèira (alliária), que significa planta (...) que tem o cheiro de alho. A sua definição como espécie de chouriço temperado com alhos que se fabrica em Trás-os-Montes, surge apenas na 10.ª edição (1949-1958) do mesmo dicionário. Tradicional enchido da culinária portuguesa feito à base de carne e gordura de porco, carne de aves, pão, azeite, banha, alho e colorau, são inegavelmente reconhecidas como um típico prato português. Actualmente muito espalhadas por todo o país, as alheiras mais conhecidas são as de Mirandela da região de Trás-os-montes, sendo consideradas uma das 7 Maravilhas Gastronómicas de Portugal. A origem deste tradicional iguaria remonta aos finais do século XV e inícios do século XVI. Nessa altura na região transmontana, existia uma grande comunidade de judeus, provenientes do reino de Castela donde tinham sido expulsos em 1492. Perseguidos pela Inquisição e facilmente reconhecidos por algumas das suas tradições, entre as quais a recusa de ingerir carne de porco, base da alimentação da época, criaram o chamado chouriço judeu. Não podendo estes comer carne de porco por imposição da sua fé, imaginaram um enchido, que, embora semelhante aos enchidos que por essa época eram o prato forte das gentes, não levasse a carne proibida (Abade de Baçal). Por não comerem carne de porco, e de forma a não serem facilmente identificados pela inquisição devido aos seus hábitos  alimentares diferentes, decidiram pegar noutros tipos de carnes e envolvê-las numa massa de pão para criar a alheira (Ferreira et al., 2006)Assim com estes enchidos visivelmente colocados nos fumeiros tradicionais, de recheio bem temperado que simulava na perfeição a carne de porco, os cristãos novos ou marranos como eram conhecidos, conseguiram ludibriar os fiscais da Inquisição e os seus vizinhos sempre prontos a denunciar quem não cumprisse as leis estabelecidas pela Igreja Católica. Com o consumo de alheiras, podiam comprovar a sua adesão à religião cristã, mostrando que não mais seguiam as leis judaicas que impunham o não consumo de carne de porco. Rapidamente as gentes de Trás-os-montes adoptaram estes enchidos de origem judaica, mas o seu recheio continha a verdadeira carne de porco, tornando-se num dos símbolos representativos da gastronomia regional. Criadas como subterfúgio para fugir à prisão ou mesmo à morte, as alheiras são actualmente consumidas por todo o país e relembradas pelos grandes escritores portugueses:  (...) as alheiras... Quem não comeu ainda desses manjares ensacados, prove... E há-de encontrar neles o sabor das invernadas passadas ao borralho enquanto a neve cai, o perfume das graças dadas por alma dos que Deus tem, a magia da história de João de Calais contada aos filhos, e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou da Índia (Miguel Torga, Um Reino Maravilhoso).

sábado, 2 de junho de 2012

O Homem que foi Santo António

Santo António de Lisboa ou de Pádua, padroeiro de Portugal, santo casamenteiro, defensor dos amputados, dos animais, dos estéreis, dos barqueiros, dos velhos, das grávidas, dos pescadores, agricultores, viajantes e marinheiros, dos pobres e dos oprimidos. O Santo de nome António faz parte da história popular e religiosa do mundo Ocidental. A devoção popular colocou-o entre os santos mais amados do Cristianismo, cercou-o de riquíssimo folclore e atribui-lhe até aos dias de hoje inúmeros milagres e graças. Igrejas a ele consagradas multiplicam-se pelo mundo, tem vasta iconografia erudita e popular, a bibliografia devocional que ele inspira é volumosa, e em sua homenagem uma quantidade incontável de pessoas recebeu o nome António, além de inúmeras cidades, bairros e outros logradouros públicos, empresas e mesmo produtos comerciais em todo o mundo também terem seu nome (José António de Souza, in Críticas de Santo António à situação socioeconômica de sua época). Apesar de amado e idolatrado por milhões de pessoas, poucas sabem a verdadeira história do homem que nasceu em Portugal no início do século XII, que foi considerado como um homem de cultura literária invulgar e como um verdadeiro  intelectual da Idade Média (José Antunes, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)Fernando Martins de Bulhões, assim é o seu nome de baptismo, nasceu no dia 15 de Agosto de 1191 ou 1195, na freguesia da Sé em Lisboa, numa casa junto à Catedral. Segundo filho de Martins de Bulhões e de Maria Teresa Taveira de Azevedo, teve três irmãos: Pedro, Maria (que também professou a vida religiosa) desconhecendo-se o nome da outra irmã. Quando Fernando nasceu, Portugal  ainda dava os primeiros passos como país independente. Regido por D.Sancho I,  o Povoador, o território português apresentava grande instabilidade fronteiriça, sendo frequentes as lutas contra os mouros. 
A capital do reino era Coimbra, cidade onde a cultura se desenvolveu e onde se respirava conhecimento e saber. A Escola do Mosteiro de Santa Cruz, era considerada uma das melhores Instituições de ensino da Idade Média, tendo-se também notabilizado pela sua excelente biblioteca (espólio actualmente pertencente à Biblioteca Municipal do Porto). Nascido no seio de uma família de origem nobre, Fernando cedo teve acesso à educação e à cultura. Com cerca de 7 anos entra para a Escola da Igreja de Santa Maria Maior, hoje Sé de Lisboa, sob a orientação dos cónegos Regrantes de Santo Agostinho, onde se iniciou no Trivium - gramática, lógica e retórica e no Quadrivium - aritmética,  geometria, astronomia e música. Aos 15 anos ingressa como noviço da mesma Ordem, no Mosteiro de São Vicente de Fora, dando assim início à sua formação religiosa. Sendo uma das mais poderosas e influentes Ordens religiosas em Portugal, permitiu a Fernando desenvolver o seu conhecimento em diversas áreas desde a Teologia à Filosofia, passando pelas Ciências Naturais. Aqui desenvolveu capacidade de meditação e contemplação, tornando-se num cónego Regente de Santo Agostinho, tendo recebido a murça  (vestimenta de cor que caracteriza as ordem religiosas que os cónegos utilizam por cima das batinas brancas) das mãos do então Prior D.Gonçalo Mendes. No fim do mês de Setembro de 1212, Frei Fernando ingressa no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, centro cultural, social e politico do país, onde encontra reunidas todas as condições para completar a sua instrução pessoal e religiosa. Bons professores não lhe faltaram. Conhecem-se, com grande probabilidade, alguns dos mais insignes que então leccionavam nestes mosteiros e até na primeira escola da catedral de Lisboa (José Antunes).Tornou-se sacerdote em 1218-1219. É também em Coimbra que teve a oportunidade de privar com os Frades Menores de São Francisco, que recusavam a riqueza, a posse de bens materiais e de grandes conventos, vivendo na pobreza e penitência, sobrevivendo graças a esmolas, tentando desta forma seguir os ideais de Francisco de Assis, o seu mentor.
Este contacto com os Franciscanos alterou a forma de Fernando ver a religião e o mundo que o rodeava. Quando em 1220, chegam a Coimbra os corpos de cinco frades franciscanos mortos em Marrocos onde tinham ido pregar a Boa Nova,  Frei Fernando troca o hábito e a murça de cónego Regrante de Santo Agostinho pela simples batina castanha e corda à cintura tão características dos Franciscanos. Podemos dizer que, nesse dia, o desejo de encontrar a morte pelo martírio desprendeu-o de tudo: das suas raízes, da sua vocação monástica e da quietude do Mosteiro, dos estudos, da ciência. Tinha cerca de 30 anos (Frei Acácio José Afonso Sanches)É nesta altura que desaparece Frei Fernando e nasce Frei António, nome escolhido em honra de Santo Antão, que em latim é Antonius, que dava o nome ao local onde viviam os  frades Franciscanos. Parte para África em missão apostólica no Inverno de 1220, mas adoece com gravidade, não chegando a cumprir nenhuma das funções a que estava destinado, e é enviado novamente para Portugal. A viagem de regresso foi atribulada e o navio que o transportava do Norte de África para Lisboa é desviado para o Sul de Itália por uma forte tempestade. Estávamos no início da Primavera de 1221, e Frei António desembarca na costa italiana da Sicília, sendo recolhido pelos Franciscanos italianos que o levaram para a cidade de Messina, onde esteve em convalescença. Em Maio de 1221, realizou-se na cidade de Assis, o Capitulo Geral dos Frades Menores, onde Frei António conheceu Francisco de Assis, que presidia ao encontro. Mas foi na cidade de Forli, que António deu a conhecer o seu maior dom: o dom da oratória. Sempre reservado e humilde, falava pouco e raramente emitia opinião. Em Setembro de 1222, numa cerimónia de ordenação de vários sacerdotes, o Superior do eremitério de Montepaolo pede ao irmão António que suba ao púlpito e diga tudo o que lhe seja sugerido pelo Espírito Santo. As primeiras palavras foram simples, mas, em seguida, tornam-se firmes, seguras e convincentes, a ponto de impressionarem todos os presentes. A notícia deste facto percorreu toda a região e, em pouco tempo, António foi nomeado pregador oficial da Ordem (Frei Acácio José Afonso Sanches).
Do Norte da Itália ao Sul de França, Frei António pregou e os seus discursos atraiam multidões. Impressionante, para o tempo, não apenas pelo conhecimento que revela das ciências naturais e das humanidades, mas igualmente pelo erudito discurso sobre noções jurídicas, como poder, Direito e Justiça (José Antunes). Homem extremamente culto, defensor da igualdade e da justiça social, tentava com os seus sermões alterar o poder que estava centralizado na sociedade medieval. Frei António dizia que a paz é a liberdade tranquila (...) eis que o teu rei vem a ti, para tua utilidade. Manso, para ser amado. Não para ser temido pela potência. São duas as virtudes próprias dum rei: a justiça e a piedade. Assim o teu rei é justo, enquanto distribui a justiça a cada um segundo as suas obras. E nem o próprio clero ficava de fora das suas críticas sociais: cairão (...) os clérigos que se mancharam com o sangue da luxúria e com a terra da pecúnia. E com eles cairão os unicórnios, os imperadores e reis deste mundo; e os touros, os bispos mitrados que têm na cabeça dois cornos como se fossem touros. Todos estes (...) cairão com os poderosos, que são os príncipes e potestades (aqueles que detêm o poder) deste século (...). Os seus sermões reflectem ser um profundo conhecedor das obras de Plínio, Cícero, Sêneca, Galeno e Aristóteles. A sua grande cultura tornou-o numa das mais respeitadas figuras da igreja Católica, chegando São Boaventura a dizer que possuía a ciência dos anjos. Foi o primeiro professor de Teologia da Ordem dos Franciscanos.
Também a sua obra escrita, Sermões Dominicais e Festivos, num total de setenta e sete sermões, está recheada de beleza e densidade de pensamento. Vasta, profunda, extraordinária, a respeito da Sagrada Escritura. Ampla, variada e bem apropriada nas transcrições dos textos dessas grandes colunas, dos primeiros sete séculos, que foram os Padres da Igreja. Impressionante, para o tempo, em ciências naturais e em humanidades (José Antunes). Frei António morre a 13 de Junho de 1231, com apenas 40 anos, por hidropsia (retenção de liquidos por mau funcionamento orgânico) num Convento de Clarissas em Arcella, próximo da cidade de Pádua para onde se queria dirigir. Cumprindo a sua vontade foi enterrado em Pádua. O seu túmulo encontra-se na Basilica de Santo António de Pádua, sendo visitado por milhares de fiéis todos os anos. Beatificado a 30 de Maio 1232 foi proclamado Doutor da Igreja pelo Papa Pio XII a 16 de Janeiro de 1946. Nasceu Fernando em Portugal e morreu António em Itália. Nasceu homem e morreu santo, mas durante toda a sua vida defendeu ideais de justiça, liberdade e igualdade baseados no seu grande conhecimento e cultura, ainda tão pouco praticados nos nossos dias. Lembrado anualmente a 13 de Junho como santo milagreiro, deveria ser lembrado todos os dias pelos ideais sociais que defendia: Só haverá liberdade tranquila, ou seja paz, quando houver justiça. Fazem pleno sentido as palavras de Pio XII que perante a bula antoniana disse: Exulta, Lusitania felix ! Exulta, ó feliz Lusitânia!