O concelho de Gaia (...) anda
esquecido dos portugueses. A esta palavra, Gaia, (...) liga-se apenas
uma povoação que dista tantas léguas do Porto. Supõe-se que Gaia está imersa
numa cheia de vinho e que, nesse tão histórico e tão lindo trato de
terra portuguesa, só há armazéns vinícolas. E todavia se há concelho de
Portugal digno de estudo, merecedor de ser passeado e preferido é Gaia: ele
contem tudo - a azafama industrial e o remanso umbroso dos seus aspectos
rurais, o tráfego ribeirinho e o sossego costeiro das
praias, adormecendo na sua almofada de areia o rumor do trabalho;
embarcadiços e exportadores, o gracioso tipo feminil da Madalena e o exemplar
bretão do comércio exportador; zona comercial e
zona agrícola, zona seca e zona molhada, a variedade, o contraste, a vida
com o seu labor, as suas soalheiras, as encostas difíceis de luta e
das colinas, sombras, flores e monumentos. É uma relíquia do passado
arqueologico, historico, administrativo e um pégão (alicerce) do
futuro ( Joaquim Leitão, in Mea Villa de Gaya,
1909). De facto as palavras de Joaquim Leitão poderiam ser transpostas
para o ano 2012. O que se sabe de Gaia? Tradicionalmente vista como cidade
sombra do Porto, albergue das famosas Caves do Vinho do Porto e...pouco mais.
Mas Gaia é possuidora de uma história muito rica!
Na sua origem está um castro,
localizado na margem sul do rio (ainda que existam correntes que
contradizem esta) , que aquando da sua integração
no Império Romano, tomou o nome de Cale ou Gale,
já que no latim não existe distinção de som entre as letras c e g.
Tal designação parece ter como raiz etimológica,
a palavra celta Gall, com a qual os celtas se designavam
a eles próprios (tal como surge em Galiza, Galway, Gália).
O próprio nome do rio Douro, que banha a cidade poderá ter origem na palavra celta Dwr, que significa água. Durante o
tempo da administração romana a grande maioria da população vivia na margem
sul do rio Douro, existindo uma pequena minoria que vivia junto ao porto de
águas fundas na outra margem, local da actual Miragaia. Segundo
alguns historiadores, a designação de Portus Cale atribuída posteriormente
à cidade do Porto, queria designar o porto (em latim portus) de Gaia (Cale).
Independentemente de qual das margens era designada por Cale (a direita ou
a esquerda) o nome de Portugal, provém da conjugação destas duas
denominações: Portus e Cale. O nome Cale aparece pela primeira vez no Itinerarium do
Imperador romano Antonino Pio (138-161), que identifica as vias militares
existentes. Na estrada romana que ligava Olissipo (Lisboa) a Bracara
Augusta (Braga), Cale está descrita como sendo a última estação a sul do
Douro, no termo da estrada, onde se fazia a travessia do rio. Foi nas margens
do rio Douro que por diversas vezes se decidiram os destinos do território ao
longo das sucessivas invasões sofridas: romanos, suevos, visigodos e mouros.
No
século IX, após o término do domínio mouro pela intervenção de
Vímara Peres, surge uma figura lendária para Gaia, o Rei Ramiro. Segundo a
Lenda, no ano de 932, o rei D. Ramiro raptou Zahara, a bela irmã
do mouro Alboazar, que vivia no castelo de Cale. Este por sua vez, como
vingança raptou a rainha Gaia, com quem Ramiro era casado. Alboazar
trouxe a raptada para o seu castelo e, quando Ramiro regressou a casa e não
encontrou a mulher, combinou com o filho, D.Ordonho e outros vassalos ir
libertar a rainha e castigar o mouro raptor. Embarcaram em naus e vieram
até à margem, cobertos com panos verdes para se confundirem com as
árvores. Para vencer Alboazar , D. Ramiro
disfarçou-se de romeiro e combinou com os seus companheiros de armas que
acorressem ao castelo quando o ouvissem tocar uma trompa. Ramiro esperou junto
de uma fonte, perto do castelo. Uma donzela que servia a rainha veio
buscar à fonte água a mando dela. Aí, encontrou o romeiro que lhe pediu
água para beber, desejo que ela satisfez. Aproveitando a oportunidade, Ramiro
lançou no recipiente da água a metade de um anel que havia em tempos repartido
com a rainha. A rainha Gaia, ao encontrar o anel na bilha da água, mandou
chamar o romeiro à sua presença. Apaixonada pelo mouro, e decidida a
desfazer-se do marido cristão, prendeu-o num quarto, que foi aberto à chegada
de Alboazar , que sorrindo, lhe perguntou o que
ele, um rei cristão, faria se tivesse nas suas mãos o seu inimigo. Tendo em
mente o combinado com os seus homens Ramiro respondeu que o faria comer um
capão, beber uma caneca de vinho, e depois coloca-lo-ía no topo da torre do
castelo a tocar uma trompa até rebentar. Alboazar achou
graça e garantiu-lhe que seria essa a sua morte. Abriu os portões do castelo
convidando todos os moradores a assistir. Ramiro comeu, bebeu, foi conduzido ao
alto do castelo e tocou a trompa até que as suas gentes, ao ouvir o sinal
combinado, irromperam pelos portões abertos do castelo, chacinando as tropas do
mouro desprevenidas e destruindo o castelo. O próprio Ramiro matou Alboazar e,
tomando a sua mulher, embarcou, seguido pelos seus homens. A rainha,
quando as naus se afastavam, começou a chorar olhando o castelo onde fora
feliz. O rei perguntou porque chorava ela, vindo a saber que era por amor do
bom mouro que tinha sido morto. Ramiro, doido de ciúmes, atou-lhe uma
pedra ao pescoço, e atirou-a ao mar num local que ficou a ser conhecido por Foz
de Âncora. D.Ramiro voltou para Leão onde se casou com a Zahara, entretanto
baptizada, de quem teve vasta descendência.
Ainda de acordo com essa
tradição, a encosta que o rei teria subido em Gaia, denomina-se actualmente por Rua
do Rei Ramiro e a fonte por fonte do Rei Ramiro. Nas armas da cidade de Gaia
figuram uma torre encimada por um cavaleiro tocando uma trompa. O Castelo
de Gaia situava-se no que ainda hoje é designado por Monte de Gaia. A primeira referência surge com príncipe D.Afonso,
filho de D.Dinis, a 4 de Janeiro de 1322; D.Pedro apoderou-se do castelo após a
morte de D.Inês, altura em que surge o registo do primeiro alcaide do Castelo,
de nome Rodrigo Anes de Sá, em 29 de Julho de 1357. O castelo sofre obras de
remodelação em 1366, segundo o registo feito pelo abade do Mosteiro de Pedroso,
que contribuiu com 20 carros de lenha, carros e bois para a execução da obra.
Em 1385 os moradores do Porto, em desacordo com o alcaide Aires Gomes de Sá,
assaltam o castelo e a destruição foi de tal forma grande que nunca mais houve
um alcaide no castelo. O escrivão de D.João III, João de Barros,
descreveu o castelo: Tem a cidade, o arrabalde de Vila Nova, cuja
paróquia é Santa Marinha e junto dela está o Castelo de Gaia em um lugar alto e
mui aprazível. Este castelo é já derrubado, que a cidade já derrubou. É tão
antigo que dizem que o fundou Caio Júlio César. E nele estavam umas pedras com
o nome de Caio César. Mas foi na Guerra Liberal que o castelo sofreu a
sua destruição final . As forças de D.Miguel fortificaram-se na zona do castelo
de Gaia, e daí bombardearam o Palácio das Carrancas, quartel general de
D.Pedro. As forças leal a D.Pedro retaliaram e da bateria colocada nas
Virtudes desfizeram o reduto miguelista, incluindo o que restava do tão
maltratado castelo.
Recuando ao século XI, depois de 1035, com a pacificação do
território a sul do Douro, surgiram duas povoações na margem esquerda do rio:
Gaia e Vila Nova, que após a fundação do Reino Portucalense se mantiveram
autónomas. Gaia, denominado Concelho de Cima, recebeu o seu foral do Rei
D.Afonso III em 1255 e Vila Nova, o Concelho de Baixo, recebeu do Rei D.Dinis o
foral em 1288. Segundo a tradição estes dois concelhos eram separados pela
Fonte dos Cabeçudos, localizada na actual Travessa Cândido dos
Reis. O arqueólogo Gonçalves Guimarães (1995), descreve as profissões
existentes nas duas povoações, Gaia e Vila Nova. Gaia tinha um barqueiro,
um calafate, um estendeiro e um tanoeiro, enquanto Vila Nova tinha quatro
carpinteiros, dois tendeiros, um marmeleiro, um cesteiro, um barbeiro e um
oleiro. Contudo, são na sua maioria por natureza e tradição lavradores (NOGUEIRA,
1987).
No século XIX, mais uma vez Gaia e Vila
Nova estiveram no centro de batalha durante a Guerra Peninsular e depois no Cerco do Porto,
com o Douro novamente a marcar a fronteira. No final da Guerra Liberal, a 20 de
Junho de 1834, Gaia e Vila Nova fundem-se, nascendo Vila Nova de Gaia. O seu
primeiro Presidente do Município foi António da Rocha Leão, antigo mestre
tanoeiro e fundador da casa de Comércio de Vinhos do Porto. No século XIX, Pinho Leal descreve no dicionário Portugal Antigo e Moderno, GAIA ou
VILLA NOVA DE GAIA – villa, Douro, comarca e em frente do Porto, separada
d’esta cidade apenas pelo Douro, e sobre a margem esquerda d’este rio, 1 800
fogos, 7 000 almas, … há n’esta villa grande numero de armazéns, que podem
conter mais de 100 000 pipas. Vila Nova de Gaia tornou-se em meados do
século XVIII numa terra de homens do mar, de artifices, mercadores e de homens
de negócios. A localidade prosperava, começando a atrair cada vez mais
estrangeiros, especialmente ingleses, que desenvolveram o comércio do Vinho do
Porto com a construção de armazéns e companhias
exportadoras de tão famoso vinho. A zona ribeirinha de
Gaia, com as suas caves, tornou-se mundialmente conhecida. Quando, em 1886,
foi inaugurada a ponte D. Luís I para ligar o Porto a Vila Nova de Gaia pela
parte alta das duas cidades, nas duas margens, foram abertas avenidas que
alteraram o crescimento urbano.
Ao longo da
então chamada Avenida de Campos Henriques (actual Avenida da
Republica), situada em Gaia, foram construídos palacetes edificados pela
burguesia emergente. O crescimento populacional, económico e industrial deste
novo concelho estava em franco progresso. Em 1841 é feito o primeiro pedido de
elevação a cidade, durante o reinado de D. Maria II, que foi recusado. Vários
pedidos se foram sucedendo à medida que a Vila aumentava de população e de
importância, mas apenas a 28 de Junho de 1984 Vila Nova de Gaia foi elevada a
cidade, mantendo no entanto a designação de Vila Nova.
Actualmente com 168,7 km² de área, Vila
Nova de Gaia é o maior concelho do Grande Porto. Subdividido em 24 freguesias,
está limitado a norte pelo município do Porto, a nordeste por Gondomar, a sul
por Santa Maria da Feira e Espinho e a oeste pelo oceano Atlântico. Este
contexto permite-lhe ser um concelho de grandes contrastes, entre zonas
interiores, rio e mar, bem como entre áreas urbanas, industriais e rurais (Arquivo
Municipal Sophia de Mello Breyner). Da original Cale já pouco resta. Mas a
história desta cidade está impressa nas pedras graníticas da zona
ribeirinha, nos muros da Serra do Pilar,na alma das suas gentes e no vinho que
leva a sua história a todo o mundo. Cale ou Gaia, não importa o nome que lhe
é atribuído. Descrita por Almeida Garrett, Ramalho Urtigão, Luis Pereira
Brandão e João Vaz, entre muitos outros, é terra com história e de muitas
estórias.
Gostei muito. Ou não fosse eu um gaiense de gema.
ResponderEliminarToni