segunda-feira, 4 de junho de 2012

Um enchido do século XV



As tradições normalmente não se questionam, mantêm-se e prolongam-se. No entanto é importante tentar saber o que está na sua base já que por detrás delas encontram-se muitas vezes pedaços da nossa história, que de outra forma seria difícil descobrir. As tradições culinárias, há anos enraizadas no nosso quotidiano encerram pequenos mistérios que vale a pena desvendar. Fazendo parte destes pedaços de história estão as alheiras. palavra alheira aparece referida pela primeira vez na 7.ª edição do Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva, de 1878 como alhèira (alliária), que significa planta (...) que tem o cheiro de alho. A sua definição como espécie de chouriço temperado com alhos que se fabrica em Trás-os-Montes, surge apenas na 10.ª edição (1949-1958) do mesmo dicionário. Tradicional enchido da culinária portuguesa feito à base de carne e gordura de porco, carne de aves, pão, azeite, banha, alho e colorau, são inegavelmente reconhecidas como um típico prato português. Actualmente muito espalhadas por todo o país, as alheiras mais conhecidas são as de Mirandela da região de Trás-os-montes, sendo consideradas uma das 7 Maravilhas Gastronómicas de Portugal. A origem deste tradicional iguaria remonta aos finais do século XV e inícios do século XVI. Nessa altura na região transmontana, existia uma grande comunidade de judeus, provenientes do reino de Castela donde tinham sido expulsos em 1492. Perseguidos pela Inquisição e facilmente reconhecidos por algumas das suas tradições, entre as quais a recusa de ingerir carne de porco, base da alimentação da época, criaram o chamado chouriço judeu. Não podendo estes comer carne de porco por imposição da sua fé, imaginaram um enchido, que, embora semelhante aos enchidos que por essa época eram o prato forte das gentes, não levasse a carne proibida (Abade de Baçal). Por não comerem carne de porco, e de forma a não serem facilmente identificados pela inquisição devido aos seus hábitos  alimentares diferentes, decidiram pegar noutros tipos de carnes e envolvê-las numa massa de pão para criar a alheira (Ferreira et al., 2006)Assim com estes enchidos visivelmente colocados nos fumeiros tradicionais, de recheio bem temperado que simulava na perfeição a carne de porco, os cristãos novos ou marranos como eram conhecidos, conseguiram ludibriar os fiscais da Inquisição e os seus vizinhos sempre prontos a denunciar quem não cumprisse as leis estabelecidas pela Igreja Católica. Com o consumo de alheiras, podiam comprovar a sua adesão à religião cristã, mostrando que não mais seguiam as leis judaicas que impunham o não consumo de carne de porco. Rapidamente as gentes de Trás-os-montes adoptaram estes enchidos de origem judaica, mas o seu recheio continha a verdadeira carne de porco, tornando-se num dos símbolos representativos da gastronomia regional. Criadas como subterfúgio para fugir à prisão ou mesmo à morte, as alheiras são actualmente consumidas por todo o país e relembradas pelos grandes escritores portugueses:  (...) as alheiras... Quem não comeu ainda desses manjares ensacados, prove... E há-de encontrar neles o sabor das invernadas passadas ao borralho enquanto a neve cai, o perfume das graças dadas por alma dos que Deus tem, a magia da história de João de Calais contada aos filhos, e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou da Índia (Miguel Torga, Um Reino Maravilhoso).

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